segunda-feira, 17 de abril de 2023

 

 


Será que a Santa Missa Tridentina ou a Missa no rito antigo está proibida na Igreja, ou alguma vez foi proibida? É a estas perguntas que vamos responder neste artigo.

O que é a Santa Missa? A Santa Missa é a renovação e reactualização do Sacrifício da Cruz.

Pelo intermédio do sacerdote, o Cristo oferece ao Seu Pai de maneira incruenta (sem derramamento de sangue) o Seu Corpo e Sangue que tinha imolado de maneira cruenta (com derramento de sangue) na Cruz. Logo a Missa é um verdadeiro sacrifício pelo qual os méritos do Sacrifício da Cruz nos são aplicados.

«O Sagrado Concílio de Trento afirmou: Se alguém disser que na Missa não se oferece a Deus um sacrifício verdadeiro e próprio, ou que o oferecer não é mais do que nos dar Cristo por alimento: seja anátema»( Heinrich Denzinger. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral da Igreja católica, Cân. 2, parágrafo 1751).

«Se alguém disser que, por aquelas palavras: “Fazei isto em meu memorial” (Lc 22,19; 1Cor 11,24), Cristo não instituiu os Apóstolos sacerdotes, ou não ordenou que eles e os outros sacerdotes oferecessem seu corpo e sangue: seja anátema» (Ibidem, parágrafo 1752).

«Se alguém disser que o sacrifício da Missa só é de louvor e ação de graças ou mera comemoração do sacrifício realizado na cruz, porém não propiciatório; ou que só aproveita a quem o recebe e não se deve oferecer pelos vivos e defuntos, pelos pecados, penas, satisfações e outras necessidades: seja anátema» (Ibidem, Cân. 3, parágrafo 1753).

A santa Missa no rito antigo ou também denominada Missa tridentina, expressa melhor do que a Missa no novo rito os dogmas quer da transubstanciação, quer a renovação do sacrifício do Calvário.

A Missa tridentina estará sempre vigente na Igreja, isto porque: São Pio V, promulgando o seu Missal tridentino (pela Bula Quo Primum Tempore, do dia 14 de Julho de 1570), concedeu um privilégio perpétuo segundo o qual nenhum sacerdote poderia ser proibido de ser fiel a este rito para celebrar a Missa. Além, disto esta Missa dificilmente poderia ser abolida porque a Igreja sempre respeitou os ritos antigos multisseculares, em vez de tentar proibi-los. (Cfr. Padre Mathias Gaudron, Catecismo católico da crise na Igreja, Edição: Lesa mis de saint François de Sales, p. 217)

“Além disso, em virtude de Nossa Autoridade Apostólica, pelo teor da presente Bula, concedemos e damos o indulto seguinte: que, doravante, para cantar ou rezar a Missa em qualquer Igreja, se possa, sem restrição seguir este Missal com permissão e poder de usá-lo livre e licitamente, sem nenhum escrúpulo de consciência e sem que se possa incorrer em nenhuma pena, sentença e censura, e isto para sempre.”( São Pio V, a Bula “Quo Primum Tempore”)

“O Sumo Pontífice (o Papa João Paulo II) concede aos Bispos diocesanos a faculdade de usar um indulto pelo qual os sacerdotes e fiéis…possam celebrar a Missa de acordo com a edição 1962 do Missal Romano”(A Missa Tradicional Latina).

“O Papa… concede este indulto como sinal da sua preocupação por todos os seus filhos”. (Arcebispo Augustin Mayer, Pro-Prefeito Bispo Virgílio Noe, Secretario).

O Cardeal Stickler relata: «Em 1986, o Papa João Paulo II colocou duas questões a uma comissão de nove Cardeais. Primeiramente: “ O Papa Paulo VI ou uma autoridade competente proibiu na nossa época a celebração da missa tridentina?” A resposta dada por oito dos nove Cardeais em 1986 foi: Não, a Missa de São Pio V nunca foi proibida. Posso dizer isso, porque fui um dos nove Cardeais da comissão. Houve também uma outra questão interessante: “Um bispo pode proibir a um sacerdote que tem boa fama de continuar a celebrar tridentina?” Os nove Cardeais foram unânimes para dizer que nenhum bispo podia proibir a um sacerdote católico de celebrar a missa tridentina. Não há interdição oficial e creio que o papa nunca fulminaria uma interdição…justamente por causa das palavras de São Pio V, que disse que esta missa valeria perpetuamente». (Cfr. Padre Mathias Gaudron, Catecismo católico da crise na Igreja, Edição: Les amis de saint François de Sales, p. 217-218)

O Papa Bento XVI no MOTU PROPRIO SUMMORUM PONTIFICUM de 7 de Julho de 2007 Afirmou que: «é lícito celebrar o Sacrifício da Missa segundo a edição típica do Missal Romano, promulgada pelo Beato João XXIII em 1962 e nunca ab-rogada (anulada), como forma extraordinária da Liturgia da Igreja. E que os sacerdotes não necessitam de qualquer autorização da Sé Apostólica nem do seu Ordinário para celebrar esta Santa Missa».

Numa entrevista, que D. Athanasius Schneider, Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Maria Santíssima em Astana, no Cazaquistão, concedeu à jornalista Diane Montagna por ocasião da publicação do Motu Proprio Traditionis Custodes, do Papa Francisco, que visa limitar duramente as celebrações da Santa Missa tradicional, este prelado disse: «O Cardeal Joseph Ratzinger falou da limitação dos poderes do papa em relação à liturgia com esta explicação esclarecedora: «O papa não é um monarca absoluto cuja vontade é lei; é, antes, o guardião da Tradição autêntica e, portanto, o primeiro garante da obediência. Não pode fazer o que quer e, por conseguinte, é capaz de opor-se àqueles que, por sua vez, querem fazer tudo o que lhes vem à mente. A sua regra não é a do poder arbitrário, mas a da obediência na fé. É por isso que, em relação à Liturgia, tem a tarefa de um jardineiro, não a de um técnico que constrói novas máquinas e atira as velhas para o monte de sucata. O “rito”, aquela forma de celebração e de oração amadurecida na fé e na vida da Igreja, é uma forma condensada de Tradição viva em que a esfera que usa aquele rito expressa toda a sua fé e oração, e assim, ao mesmo tempo, a comunhão das gerações umas com as outras torna-se algo que podemos experimentar, a comunhão com as pessoas que rezam antes de nós e depois de nós. O rito é, portanto, um bem que se dá à Igreja, uma forma viva de paradosis, a transmissão da Tradição» (prefácio a Dom Alcuin Reid, Lo sviluppo organico della liturgia. I principi della riforma liturgica e il loro rapporto con il movimento liturgico del XX secolo prima del Concilio Vaticano II, San Francisco 2004). A Missa tradicional é um tesouro que pertence a toda a Igreja, pois há, pelo menos, mil anos é celebrada, tida em grande consideração e amada por sacerdotes e santos. Na verdade, a forma tradicional da Missa era quase idêntica durante séculos antes da publicação, em 1570, do missal do Papa Pio V. Um tesouro litúrgico válido e muito estimado durante quase mil anos não é propriedade privada de um papa que ele possa dispor livremente. Por isso, os seminaristas e os jovens sacerdotes devem pedir o direito de usar este comum tesouro da Igreja e, se esse direito lhes for negado, podem, de qualquer forma, usá-lo, talvez de forma clandestina. Isso não seria um acto de desobediência, mas sim de obediência à Santa Madre Igreja, que nos deu este tesouro litúrgico»

«Com o tempo, surgirá, seguramente, uma cadeia mundial de Missas catacumbais, como acontece em todos os tempos de emergência e perseguição. Poderemos, efectivamente, assistir a uma era de Missas tradicionais clandestinas semelhante àquela representada, de maneira tão impressionante, por Aloysius O’Kelly, na sua pintura Mass in a Connemara Cabin.

Ou talvez vivamos uma época semelhante àquela descrita por São Basílio Magno, quando os católicos tradicionais foram perseguidos por um episcopado liberal ariano no século IV. Escrevia São Basílio: «A boca dos verdadeiros crentes é muda, enquanto toda a língua blasfema se agita livremente; as coisas santas são pisoteadas; os melhores leigos evitam as igrejas como escolas de impiedade; e levantam as mãos nos desertos com suspiros e lágrimas ao seu Senhor nos céus. Também tu deves ter ouvido o que está a acontecer na maioria das nossas cidades» (Carta 92). “A admirável, harmoniosa e totalmente espontânea propagação e contínuo crescimento da forma tradicional da Missa em quase todos os países do mundo, mesmo nas terras mais remotas, é, sem dúvida, obra do Espírito Santo e um verdadeiro sinal do nosso tempo. Esta forma da celebração litúrgica produz verdadeiros frutos espirituais, especialmente na vida dos jovens e dos convertidos à Igreja Católica, porque muitos deles foram atraídos para a fé católica precisamente pela força irradiante deste tesouro da Igreja. O Papa Francisco e os outros bispos que executarão o seu motu proprio deveriam considerar seriamente o sábio conselho de Gamaliel, e perguntar-se se, efectivamente, estão a combater contra uma obra de Deus: «E, agora, digo-vos: não vos metais com esses homens, deixai-os. Se o seu empreendimento é dos homens, esta obra acabará por si própria; mas, se vem de Deus, não conseguireis destruí-los sem correrdes o risco de entrardes em guerra contra Deus» (Act 5, 38-39). O Papa Francisco reconsidere, em vista da eternidade, o seu acto drástico e trágico, e, com coragem e humildade, retrate este novo motu proprio, recordando as suas próprias palavras: «Na realidade, a Igreja mostra-se fiel ao Espírito Santo na medida em que põe de lado a pretensão de O regular e domesticar» (Homilia na Catedral Católica do Espírito Santo, Istambul, 29 de Novembro de 2014). (in: https://www.diesirae.pt/.../as-novas-regras-do-motu...).

Por conseguinte, pelo que ficou dito, a Missa Tridentina ou Missa no rito antigo não está e nem pode ser proibida .”


quarta-feira, 5 de abril de 2023

«As novas regras do motu proprio rebaixam a forma milenar da lex orandi da Igreja romana», considera D. Athanasius Schneider

Julho 26, 2021

 

O portal Dies Iræ traduziu e disponibiliza, em língua portuguesa, a esclarecedora entrevista que D. Athanasius Schneider, Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Maria Santíssima em Astana, no Cazaquistão, concedeu à jornalista Diane Montagna por ocasião da publicação do Motu Proprio Traditionis Custodes, do Papa Francisco, que visa limitar duramente as celebrações da Santa Missa tradicional.    

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Excelência, a nova carta apostólica do Papa Francisco, sob forma de motu proprio, de 16 de Julho de 2021, chama-se Traditionis Custodes (Guardiões da Tradição). Qual foi a sua primeira impressão sobre a escolha deste título? 

A minha primeira impressão foi de um pastor que, em vez de sentir o odor das suas ovelhas, as espanca raivosamente com um bastão.         

Quais são as suas impressões gerais sobre o motu proprio e a carta de acompanhamento do Papa Francisco aos bispos do mundo, em que explica a sua lógica para limitar a Missa tradicional em latim?

Na sua exortação apostólica programática, Evangelii Gaudium, Francisco propugna «certas atitudes que ajudam a acolher melhor o anúncio: proximidade, abertura ao diálogo, paciência, acolhimento cordial que não condena» (n. 165). Porém, ao ler o novo motu proprio e a carta que o acompanha, fica-se com a impressão oposta, ou seja, que o documento, no seu todo, mostra uma intolerância pastoral e também uma rigidez espiritual. O motu proprio e a carta que o acompanha comunicam um espírito julgador e pouco acolhedor. No documento sobre a Fraternidade Humana (assinado, em Abu Dhabi, a 4 de Fevereiro de 2019), o Papa Francisco abraça a «diversidade da religião», enquanto no seu novo motu proprio rejeita decididamente a diversidade das formas litúrgicas no rito romano.  

Que flagrante contraste de atitude apresenta este motu proprio em comparação com o princípio orientador do pontificado do Papa Francisco, quer dizer, a inclusão e o amor preferencial pelas minorias e periferias na vida da Igreja! E que posição surpreendentemente restrita se descobre nele em contraste com as próprias palavras do Papa Francisco: «Não podemos dar-nos ao luxo de ser ingénuos; sabemos que nos vem, de vários lados, a tentação de viver nesta lógica do privilégio que, ao separar, nos separa; ao excluir, nos exclui; ao confinar os sonhos e a vida de muitos dos nossos irmãos, nos confina» (Homilia, Vésperas, 31 de Dezembro de 2016). As novas regras do motu proprio rebaixam a forma milenar da lex orandi da Igreja romana e, ao mesmo tempo, fecham os «sonhos e a vida» de muitas famílias católicas e, especialmente, de jovens e jovens sacerdotes, cuja vida espiritual e cujo amor por Cristo e pela Igreja cresceram e muito beneficiaram da forma tradicional da Santa Missa.  

O motu proprio estabelece um princípio de rara exclusividade litúrgica, afirmando que os novos livros litúrgicos promulgados são a única expressão da lex orandi do rito romano (art. 1). Que contraste mesmo nesta posição com outras palavras do Papa Francisco: «É verdade! O Espírito Santo suscita os diversos carismas na Igreja; à primeira vista, isto parece criar desordem, mas na realidade, sob a sua guia, constitui uma imensa riqueza, porque o Espírito Santo é o Espírito de unidade, que não significa uniformidade» (Homilia na Catedral Católica do Espírito Santo, Istambul, sábado, 29 de Novembro de 2014). 


Quais são suas maiores preocupações sobre o novo documento?         

Como bispo, uma das minhas principais preocupações é que, em vez de favorecer uma maior unidade através da coexistência de diferentes formas litúrgicas autênticas, o motu proprio crie na Igreja uma sociedade de duas classes, por outras palavras, católicos de primeira classe e católicos de segunda classe. Os privilegiados de primeira classe são aqueles que aderem à liturgia reformada, isto é, o novus ordo, e os católicos de segunda classe, que agora serão tolerados a custo, compreendem um grande número de famílias católicas, crianças, jovens e sacerdotes que, nas últimas décadas, cresceram na liturgia tradicional e experimentaram, com grande benefício espiritual, a realidade e o mistério da Igreja graças a esta forma litúrgica, que as gerações anteriores consideravam sagrada e que formou tantos santos e católicos excepcionais ao longo da história.         

O motu proprio e a carta que o acompanha cometem uma injustiça contra todos os católicos que aderem à forma litúrgica tradicional, acusando-os de dividir e rejeitar o Concílio Vaticano II. Na verdade, uma parte considerável desses católicos mantém-se afastada das discussões doutrinais a respeito do Vaticano II, do novo Ordinário da Missa (Novus Ordo Missæ) e de outros problemas relativos à política eclesiástica. Eles apenas querem adorar a Deus na forma litúrgica através da qual Deus tocou e transformou os seus corações e as suas vidas. O argumento invocado no motu proprio e na carta que o acompanha, isto é, que a forma litúrgica tradicional cria divisão e ameaça a unidade da Igreja, é negado pelos factos. Além disso, o tom depreciativo assumido nesses documentos em relação à forma litúrgica tradicional levaria qualquer observador imparcial a concluir que tais argumentos são apenas um pretexto e um estratagema, e que aqui algo mais está em jogo.           

Quão convincente lhe parece a comparação do Papa Francisco (na carta de acompanhamento aos bispos) entre as suas novas disposições e as adoptadas, em 1570, por São Pio V?        


O tempo do Concílio Vaticano II e da chamada Igreja “conciliar” foi caracterizado por uma abertura à diversidade e inclusividade das espiritualidades locais e das expressões litúrgicas, juntamente com a rejeição do princípio da uniformidade na práxis litúrgica da Igreja. Ao longo da história, a verdadeira atitude pastoral tem sido de tolerância e respeito para com uma multiplicidade de formas litúrgicas, desde que expressem a integridade da fé católica, a dignidade e a sacralidade das formas rituais e dêem verdadeiros frutos espirituais na vida dos fiéis. No passado, a Igreja romana reconheceu a diversidade de expressões na sua lex orandi. Na constituição apostólica que promulga a liturgia tridentina, Quo primum (1570), o Papa Pio V, ao aprovar todas aquelas expressões litúrgicas da Igreja romana que tinham mais de duzentos anos, reconheceu-as como expressão igualmente digna e legítima da lex orandi da Igreja romana. Nesta bula, o Papa Pio V afirma que não revoga, de modo algum, outras legítimas expressões litúrgicas dentro da Igreja romana. A forma litúrgica da Igreja romana, válida até à reforma de Paulo VI, não surgiu com Pio V, mas permaneceu substancialmente inalterada mesmo séculos antes do Concílio de Trento. A primeira edição impressa do Missale Romanum data de 1470, ou seja, cem anos antes do missal publicado por Pio V. O ordinário da Missa de ambos os missais é quase idêntico; a diferença está mais nos elementos secundários, como o calendário, o número de prefácios e as normas rubricais mais precisas.

O novo motu proprio do Papa Francisco suscita profunda preocupação na medida em que manifesta uma atitude de discriminação em relação a uma forma litúrgica da Igreja Católica quase milenar. A Igreja nunca rejeitou o que, ao longo de muitos séculos, expressou sacralidade, rigor doutrinal e riqueza espiritual, e foi elogiado por tantos papas, grandes teólogos (por exemplo, São Tomás de Aquino) e numerosos santos. Os povos da Europa Ocidental e, em parte, da Europa Oriental, da Europa do Norte e do Sul, das Américas, da África e da Ásia foram evangelizados e formados doutrinal e espiritualmente pelo rito romano tradicional, e aí encontraram a sua espiritualidade e a sua casa litúrgica. O Papa João Paulo II deu um exemplo de sincero apreço pela forma tradicional da Missa quando disse: «No Missal Romano, chamado “de São Pio V”, como em várias liturgias orientais, há belíssimas orações com as quais o sacerdote exprime o mais profundo sentido de humildade e de reverência perante os santos mistérios: essas revelam a própria substância de cada liturgia» (Mensagem aos participantes na Assembleia Plenária da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, 21 de setembro de 2001).
     

Seria contrário ao verdadeiro espírito da Igreja de todos os tempos expressar, hoje, o desprezo por esta forma litúrgica, classificá-la como “divisiva” e perigosa para a unidade da Igreja e emitir normas destinadas a fazê-la desaparecer. As normas contidas no motu proprio do Papa Francisco procuram arrancar impiedosamente da alma e da vida de muitos católicos a liturgia tradicional, que em si mesma é santa e representa a pátria espiritual desses católicos. Com este motu proprio, os católicos que, hoje, foram espiritualmente nutridos e formados pela liturgia tradicional da Santa Madre Igreja, não mais experimentarão a Igreja como mãe, mas como uma “madrasta”, conforme a própria descrição do Papa Francisco: «Uma mãe que critica, que fala mal dos seus filhos, não é mãe!» (Discurso aos consagrados e consagradas da Diocese de Roma, 16 de Maio de 2015).
 

A carta apostólica do Papa Francisco foi publicada na festa de Nossa Senhora do Carmo, padroeira dos Carmelitas (como Santa Teresinha de Lisieux), que rezam especialmente pelos sacerdotes. À luz das novas disposições, o que diria aos seminaristas diocesanos e aos jovens sacerdotes que desejavam celebrar a Missa tradicional em latim?

O Cardeal Joseph Ratzinger falou da limitação dos poderes do papa em relação à liturgia com esta explicação esclarecedora: «O papa não é um monarca absoluto cuja vontade é lei; é, antes, o guardião da Tradição autêntica e, portanto, o primeiro garante da obediência. Não pode fazer o que quer e, por conseguinte, é capaz de opor-se àqueles que, por sua vez, querem fazer tudo o que lhes vem à mente. A sua regra não é a do poder arbitrário, mas a da obediência na fé. É por isso que, em relação à Liturgia, tem a tarefa de um jardineiro, não a de um técnico que constrói novas máquinas e atira as velhas para o monte de sucata. O “rito”, aquela forma de celebração e de oração amadurecida na fé e na vida da Igreja, é uma forma condensada de Tradição viva em que a esfera que usa aquele rito expressa toda a sua fé e oração, e assim, ao mesmo tempo, a comunhão das gerações umas com as outras torna-se algo que podemos experimentar, a comunhão com as pessoas que rezam antes de nós e depois de nós. O rito é, portanto, um bem que se dá à Igreja, uma forma viva de paradosis, a transmissão da Tradição» (prefácio a Dom Alcuin Reid, Lo sviluppo organico della liturgia. I principi della riforma liturgica e il loro rapporto con il movimento liturgico del XX secolo prima del Concilio Vaticano II, San Francisco 2004). A Missa tradicional é um tesouro que pertence a toda a Igreja, pois há, pelo menos, mil anos é celebrada, tida em grande consideração e amada por sacerdotes e santos. Na verdade, a forma tradicional da Missa era quase idêntica durante séculos antes da publicação, em 1570, do missal do Papa Pio V. Um tesouro litúrgico válido e muito estimado durante quase mil anos não é propriedade privada de um papa que ele possa dispor livremente. Por isso, os seminaristas e os jovens sacerdotes devem pedir o direito de usar este comum tesouro da Igreja e, se esse direito lhes for negado, podem, de qualquer forma, usá-lo, talvez de forma clandestina. Isso não seria um acto de desobediência, mas sim de obediência à Santa Madre Igreja, que nos deu este tesouro litúrgico.    

Excelência, qual tem sido a sua impressão, até ao momento, sobre a implementação de Traditionis Custodes?      

Em poucos dias, os bispos diocesanos e até mesmo uma Conferência Episcopal inteira já começaram uma sistemática supressão de qualquer celebração da forma tradicional da Santa Missa. Estes novos “inquisidores litúrgicos” mostraram um clericalismo surpreendentemente rígido, semelhante ao descrito e lamentado pelo Papa Francisco quando dizia: «Há aquele espírito de clericalismo na Igreja que se faz sentir: os clérigos sentem-se superiores, os clérigos afastam-se do povo, os clérigos dizem sempre: isto faz-se assim, assim, assim, ou vai-te embora!» (Meditação quotidiana na Santa Missa, 13 de Dezembro de 2016).         


O motu proprio anti-tradicional do Papa Francisco assemelha-se, em alguns aspectos, às decisões litúrgicas fatais e extremamente rígidas feitas pela Igreja Ortodoxa Russa, sob o Patriarca Nikon de Moscovo, entre 1652 e 1666. Isso acabou por levar a um cisma duradouro conhecido como o dos “velhos crentes” (em russo: staroobryadtsy), que manteve as práticas litúrgicas e rituais da Igreja russa como eram antes das reformas do Patriarca Nikon. Resistindo à acomodação da piedade russa às formas contemporâneas de culto greco-ortodoxo, esses velhos crentes foram anatematizados, juntamente com o seu ritual, num sínodo de 1666-67, produzindo uma divisão entre os velhos crentes e aqueles que seguiram a Igreja do Estado na sua condenação do antigo rito. Hoje, a Igreja Ortodoxa Russa lamenta-se das drásticas decisões do Patriarca Nikon, porque se as normas por ele implementadas tivessem sido verdadeiramente pastorais e permitissem o uso do antigo rito, não teria havido um cisma secular com tantos sofrimentos inúteis e cruéis.

Nos nossos dias, assistimos a cada vez mais celebrações da Santa Missa que se tornaram uma plataforma para promover o estilo de vida pecaminoso da homossexualidade, as chamadas “missas LGBT”, uma expressão que, em si, já é uma blasfémia. Tais missas são toleradas pela Santa Sé e por muitos bispos. É urgente um motu proprio com regras estritas que suprimam a prática de tais “missas LGBT”, visto que são um ultraje à majestade divina, um escândalo para os fiéis (os pequenos) e uma injustiça para com os homossexuais sexualmente activos. Pessoas que com tais celebrações são confirmadas nos seus pecados e cuja salvação eterna é, assim, posta em perigo.       

No entanto, alguns bispos, particularmente nos Estados Unidos, mas também noutros lugares, como na França, apoiaram os fiéis da sua diocese que estão ligados à Missa tradicional. O que diria para encorajar esses seus irmãos bispos? E que atitude deveriam ter os fiéis para com os seus bispos, muitos dos quais ficaram surpresos com o documento?       

Estes bispos mostraram uma verdadeira atitude apostólica e pastoral, como aqueles que são “pastores com o odor das ovelhas”. Encorajo estes e muitos outros bispos a continuarem com uma atitude pastoral tão nobre. Que nem os louvores dos homens nem o temor dos homens os movam, mas apenas a maior glória de Deus, o maior benefício espiritual das almas e a sua salvação eterna. Por sua vez, os fiéis devem mostrar gratidão, respeito e amor filial para com estes bispos.           

Que efeito terá, na sua opinião, o motu proprio?

O novo motu proprio do Papa Francisco é, em suma, uma vitória de Pirro e terá um efeito bumerangue. As tantas famílias católicas e o número cada vez maior de jovens e sacerdotes, em particular jovens sacerdotes, que assistem à Missa tradicional, não poderão permitir que a sua consciência seja violada por um acto administrativo tão drástico. Dizer a estes fiéis e sacerdotes que devem simplesmente ser obedientes a estas normas não funcionará, pois eles sabem muito bem que um chamamento à obediência perde o seu poder quando o objectivo é suprimir a forma tradicional da liturgia, o grande tesouro litúrgico da Igreja romana.     

Com o tempo, surgirá, seguramente, uma cadeia mundial de Missas catacumbais, como acontece em todos os tempos de emergência e perseguição. Poderemos, efectivamente, assistir a uma era de Missas tradicionais clandestinas semelhante àquela representada, de maneira tão impressionante, por Aloysius O’Kelly, na sua pintura Mass in a Connemara Cabin.

Ou talvez vivamos uma época semelhante àquela descrita por São Basílio Magno, quando os católicos tradicionais foram perseguidos por um episcopado liberal ariano no século IV. Escrevia São Basílio: «A boca dos verdadeiros crentes é muda, enquanto toda a língua blasfema se agita livremente; as coisas santas são pisoteadas; os melhores leigos evitam as igrejas como escolas de impiedade; e levantam as mãos nos desertos com suspiros e lágrimas ao seu Senhor nos céus. Também tu deves ter ouvido o que está a acontecer na maioria das nossas cidades» (Carta 92).       

A admirável, harmoniosa e totalmente espontânea propagação e contínuo crescimento da forma tradicional da Missa em quase todos os países do mundo, mesmo nas terras mais remotas, é, sem dúvida, obra do Espírito Santo e um verdadeiro sinal do nosso tempo. Esta forma da celebração litúrgica produz verdadeiros frutos espirituais, especialmente na vida dos jovens e dos convertidos à Igreja Católica, porque muitos deles foram atraídos para a fé católica precisamente pela força irradiante deste tesouro da Igreja. O Papa Francisco e os outros bispos que executarão o seu motu proprio deveriam considerar seriamente o sábio conselho de Gamaliel, e perguntar-se se, efectivamente, estão a combater contra uma obra de Deus: «E, agora, digo-vos: não vos metais com esses homens, deixai-os. Se o seu empreendimento é dos homens, esta obra acabará por si própria; mas, se vem de Deus, não conseguireis destruí-los sem correrdes o risco de entrardes em guerra contra Deus» (Act 5, 38-39). O Papa Francisco reconsidere, em vista da eternidade, o seu acto drástico e trágico, e, com coragem e humildade, retrate este novo motu proprio, recordando as suas próprias palavras: «Na realidade, a Igreja mostra-se fiel ao Espírito Santo na medida em que põe de lado a pretensão de O regular e domesticar» (Homilia na Catedral Católica do Espírito Santo, Istambul, 29 de Novembro de 2014).    

Por ora, muitas famílias católicas, jovens e sacerdotes de todos os continentes choram porque o papa, seu pai espiritual, os privou do alimento espiritual da Missa tradicional, que tanto fortaleceu a sua fé e o seu amor por Deus, pela Santa Madre Igreja e pela Sé Apostólica. Podem, por algum tempo, «chorar, carregando e lançando as sementes; no regresso cantam de alegria, transportando os feixes de espigas» (Salmo 126, 6).
        

Estas famílias, estes jovens e estes sacerdotes poderiam dirigir estas ou outras palavras semelhantes ao Papa Francisco: “Santíssimo Padre, devolvei-nos aquele grande tesouro litúrgico da Igreja. Não nos trateis como Vossos filhos de segunda classe. Não violeis as nossas consciências, obrigando-nos a uma única e exclusiva forma litúrgica, Vós que sempre proclamastes ao mundo inteiro a necessidade da diversidade, do acompanhamento pastoral e do respeito pela consciência. Não deis ouvidos aos representantes de um rígido clericalismo que Vos aconselharam a realizar uma acção tão cruel. Sede um verdadeiro pai de família, que «tira coisas novas e velhas do seu tesouro» (Mt 13, 52). Se ouvirdes a nossa voz, no dia do Vosso julgamento, perante Deus, seremos os Vossos melhores intercessores”.

(https://www.diesirae.pt/2021/07/as-novas-regras-do-motu-proprio.html)